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Regulação das apostas online no Brasil (parte 4): a importância de se construir uma agenda regulatória 

Nesta semana, o Portal BNLData publica uma série de artigos sobre o processo de construção da regulação das apostas online no Brasil, iniciado com a aprovação da Lei nº 14.790, de 30 de dezembro de 2023. O primeiro artigo tratou dos aspectos a serem considerados para a organização e o sequenciamento desse processo, concluindo que o primeiro passo a ser dado é a construção de um sistema regulatório. Já o segundo artigo abordou o conceito de sistema regulatório, listou seus pilares e concluiu que sua concepção requer a construção de uma política regulatória. Em seguida, o terceiro artigo explicou o que é uma política regulatória, porque ela precisa ser elaborada e divulgada e, ainda, identificou na lei alguns objetivos implícitos que precisam ser considerados nos atos do regulador e supervisor brasileiro.      

 Neste quarto e último artigo de série, o que se busca é mostrar como conceber a estratégia para implementar essa política, ou seja, como passar da teoria à prática. Para tanto, será apresentado o conceito de agenda regulatória e demonstrado como a experiência nacional e internacional vem utilizando essa importante ferramenta.    

 O que é uma agenda regulatória? 

Se a política regulatória, como já explicado em artigo anterior, consiste na declaração dos objetivos buscados pela regulação e dos princípios que devem orientar a ação pública nesse âmbito, a agenda regulatória é o documento que estabelece como, onde e quando o órgão ou ente regulador deve atuar para implementar os objetivos de interesse público previamente definidos na política. 

A partir da Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019, a agenda regulatória passou a ser instrumento obrigatório para as agências reguladoras federais. De acordo com o art. 17 da citada lei, toda agência reguladora deverá elaborar, para cada período quadrienal, um plano estratégico que conterá os objetivos, as metas e os resultados estratégicos esperados das ações da agência reguladora relativos a sua gestão e a suas competências regulatórias, fiscalizatórias e normativas, bem como a indicação dos fatores externos alheios ao controle da agência que poderão afetar significativamente o cumprimento do plano.  

No art. 21, a lei estabelece que a agenda regulatória consiste em “instrumento de planejamento da atividade normativa que conterá o conjunto dos temas prioritários a serem regulamentados pela agência durante sua vigência”, e que essa agenda deve ser alinhada com os objetivos definidos no plano estratégico.   

É certo que não temos (ao menos ainda) uma agência reguladora para o setor de jogos e apostas – e, por isso, essa exigência legal não se aplicaria, a princípio, à vindoura Secretaria de Prêmios e Apostas, do Ministério da Fazenda. Mas seria no mínimo imprudente desconsiderar um instrumento tão relevante de planejamento como a agenda, ainda mais na decolagem da regulação de um setor tão grande e complexo.  

Por que precisamos de uma agenda regulatória?  

Tecnicamente, a agenda é um instrumento de planejamento da atividade regulatória que serve a um propósito bem específico: apontar, para o mercado regulado e para a sociedade em geral, os temas que serão enfrentados em determinado período de tempo pelo regulador, bem como os instrumentos que serão manejados para isso. O que se busca com a agenda, na prática, é dar transparência e previsibilidade à ação reguladora. 

A transparência é importante porque permite que os agentes do mercado e a sociedade possam exercer algum tipo de controle social sobre a adequação de meios e fins pelo regulador. E a previsibilidade é importante porque confere maior estabilidade e segurança jurídica ao mercado regulado, evitando que os agentes econômicos sejam surpreendidos com espasmos regulatórios, isto é, súbitos (e, por vezes, insólitos) atos de voluntarismo ou populismo do poder público. 

No caso específico do mercado brasileiro de apostas online, é possível apontar pelo menos três fatores que tornam a divulgação dessa agenda ainda mais relevante e urgente: a complexidade técnica da atividade, a repercussão econômica da regulação e a pouca (ou nenhuma) experiência regulatória brasileira no tema. 

A complexidade técnica é um fator relevante porque a indústria de jogos e apostas tem diversas especificidades que precisam ser enfrentadas. Uma casa de apostas não é uma padaria ou comércio qualquer. Ela é, na verdade, um grande complexo de relações jurídicas, econômicas, financeiras e tecnológicas que precisam ser muito bem articuladas para que funcione de forma minimamente segura e eficiente. Portanto, não é algo que se possa criar da noite para o dia. É preciso preparo, organização e muito compliance. 

Com a complexidade técnica vem a repercussão econômica da regulação. Isso porque a atuação do regulador e o conteúdo das normas por ele produzidas gerarão efeitos imediatos sobre a disposição dos agentes do mercado. Ao mesmo tempo em que conforma os custos da operação (aí incluídos, especialmente, os custos de vigilância), a ação do regulador influencia no potencial de arrecadação das receitas tributárias – o que, no caso do quadro fiscal no Brasil, é especialmente relevante nesse momento. Sob esse prisma, publicar uma agenda do setor de apostas online pode ajudar os candidatos a operadores a se prepararem melhor, o que aumenta o potencial de seu engajamento no novo mercado e, por outro lado, evita a frustração de expectativas fiscais.  

Esses dois fatores, contudo, têm sua relevância multiplicada se combinados ao terceiro:  a pouca (ou nenhuma) experiência regulatória brasileira no tema. Fato é que a ausência de paradigmas de atuação do estado brasileiro na indústria de jogos e apostas potencializa a apreensão dos candidatos a operar no Brasil, uma vez que, como nunca se regulou apostas por aqui, até mesmo os operadores internacionais mais experientes e pujantes ficam sem qualquer referência para saber o que virá. Logo, mais do que relevante, a divulgação de uma agenda regulatória nesse segmento de mercado é urgente, porque dá maior clareza de como e quando se quer chegar com as apostas online no Brasil.   

Como construir essa agenda: a experiência nacional e internacional  

Uma vez justificada a relevância e a urgência de divulgação da agenda regulatória, o desafio que se apresenta é como construir essa agenda. O ponto de partida, como já se viu no terceiro artigo dessa série, é a aprovação de uma política regulatória, com a declinação dos objetivos de interesse público a serem alcançados. A partir daí, o que se precisa é estruturar essa agenda. Para isso, não é necessário reinventar a roda, nem elaborar nenhum grande catálogo acadêmico. Basta recorrer a alguns paradigmas nacionais e internacionais em busca de inspiração.  

No Brasil, alguns exemplos interessantes de agendas aprovadas pelas agências reguladoras são os da Anatel, da Aneel e da Anvisa. Outras referências interessantes fora do eixo das agências reguladoras são as da ANPD e da CVM 

No exterior também é possível encontrar boas referências que poderiam ajudar na construção da agenda regulatória – principalmente na indústria de jogos e apostas. Um exemplo interessante e recente é o da Gambling Comission, do Reino Unido.  

Da análise de todos esses documentos, pode-se apontar cinco componentes centrais: a identificação dos temas regulatórios específicos, com sua breve descrição; a indicação do instrumento que será criado ou adotado para o enfrentamento do tema (ex: edição de portaria ou criação de sistema); a identificação dos responsáveis internos; e a indicação do prazo ou cronograma de ação. A elaboração da agenda regulatória, portanto, não é tarefa tão complexa. É preciso apenas método, técnica para produzi-la. 

Conclusão: por uma trajetória clara e planejada da regulação  

À luz de tudo o que apresentou, chega-se à conclusão de que a elaboração e divulgação de uma agenda regulatória é um passo importante (e prévio) a ser dado pela recém-criada Secretaria de Prêmios e Apostas, do Ministério da Fazenda. Mais do que um tecnicismo, a agenda é um relevantíssimo instrumento de planejamento que, na linha do que já se expôs, permitirá que a marcha da regulação do mercado de apostas online seja mais clara para todas as partes interessadas.  

Com essa medida, a novel Secretaria, além de construir o sistema regulatório brasileiro de maneira mais organizada e consistente, dará maior previsibilidade e estabilidade ao funcionamento desse importante mercado, o que, por certo, em muito contribuirá para que os candidatos a operadores possam melhor compreender e se preparar para o que está por vir. 

Esse foi o último artigo dessa série, que teve por objetivo abordar o processo de elaboração de um arcabouço regulatório para o novo, complexo e importantíssimo mercado de apostas online brasileiro, observando as mais modernas técnicas e proporcionando as necessárias segurança jurídica e previsibilidade ao setor e à sociedade. Ficam aqui o agradecimento, ao Portal BNLData, pela oportunidade e a expectativa de que as contribuições publicadas ao longo da semana tenham sido úteis ao leitor e ao mercado. 

Fonte: BNLData

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Regulação das apostas online no Brasil (parte 3): a importância e os elementos para uma política regulatória

Nesta semana, o Portal BNLData publica uma série de artigos sobre o processo de construção da regulação das apostas online no Brasil, iniciado com a aprovação da Lei nº 14.790, de 30 de dezembro de 2023. O primeiro artigo trouxe algumas reflexões para a devida organização e sequenciamento desse processo, concluindo que o primeiro passo a ser dado é a construção de um sistema regulatório. Já o segundo artigo apresentou o conceito de sistema regulatório, listou seus pilares e indicou quais devem ser os próximos passos a serem dados.

No terceiro artigo desta série, o objetivo é explicar o que é uma política regulatória, por que precisamos dela, e, ainda, trazer algumas sugestões para a construção de uma política específica para o setor de apostas online no Brasil.

O que é uma política regulatória?

De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) [1], a política regulatória é o processo pelo qual o governo identifica os objetivos de interesse público buscados para economia (ou para determinado segmento dela, no caso de política apenas setorial) e produz as normas regulatórias a partir de decisões baseadas em evidências.

Em documento oficial, a Secretaria de Acompanhamento Econômico, do atual Ministério da Fazenda, afirma que a política regulatória “refere-se aos compromissos e prioridades assumidos pelo País com o intuito de se obter uma regulação de qualidade, em prol do interesse público”[2]. Do mesmo documento, extrai-se a lição de que essa política “deve ter objetivos claros e estruturas para sua implementação que assegurem que os benefícios econômicos, sociais e ambientais justifiquem os custos de uma eventual regulação, bem como que os efeitos distributivos sejam considerados e que os benefícios líquidos maximizados”[3].

Em resumo, pode-se afirmar, então, que a política regulatória consubstancia a declaração dos objetivos buscados pela regulação e dos princípios que devem orientá-la.

Por que precisamos elaborar e divulgar uma política regulatória?

No primeiro artigo desta série, já se demonstrou que regulação é um instituto que transcende a pura e simples edição de normas; e que seu verdadeiro objetivo é influenciar ou estabelecer o comportamento dos agentes de determinado mercado para que ele funcione de forma eficiente e segura, obedecidos os objetivos de interesse público.

É precisamente aqui que se revela a importância da política regulatória: é por meio dela que se definem os objetivos (ou seja, aonde se quer chegar) e os princípios (isto é, como será direcionada ou orientada a persecução dos objetivos) da regulação daquele mercado. Trata-se, portanto, de uma grande bússola que orientará o dia a dia do regulador.

Mas não basta elaborar a política, é preciso dar a ela a devida publicidade. Isso é necessário para que os agentes do mercado e a própria sociedade tenham clareza do que o Estado pretende, como também para servir de parâmetro ou paradigma para a participação e o controle social da regulação.

Objetivos legais implícitos e política regulatória de apostas online no Brasil

Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, a elaboração de uma política regulatória de apostas online não é algo puramente teórico ou filosófico. Muito pelo contrário: a política tem grande sentido e utilidade prática.

Formalmente, a Lei nº 14.790, de 2023, não declinou os objetivos a serem buscados pela intervenção estatal no mercado de apostas online. Ou seja, não há dispositivos específicos na citada lei que indiquem os objetivos explícitos [4]. Mas isso não significa que o tema tenha passado ao largo do legislador. Recorrendo à literatura especializada e à experiência internacional da indústria de jogos e apostas, é possível vislumbrar na lei brasileira alguns objetivos implícitos, que devem ser considerados na elaboração da política regulatória a ser concebida pelo Poder Executivo.

O primeiro objetivo que se pode extrair da Lei nº 14.790, de 2023, é assegurar a livre concorrência do mercado. Isso fica evidente a partir dos arts. 4º (que estabelece claramente que “as apostas de quota fixa serão exploradas em ambiente concorrencial”) e 9º (que prevê que a autorização para a exploração de apostas de quota fixa poderá ser requerida “a qualquer tempo pela pessoa jurídica interessada”).

O segundo objetivo que se pode inferir do contexto da citada lei é o de evitar o uso do mercado de apostas para a prática de crimes. Isso fica especialmente claro a partir da leitura dos arts. 7º (que trata dos requisitos à entrada dos operadores no mercado), 8º (que trata da prevenção à lavagem de dinheiro – PLD e da prevenção à manipulação de resultados e outras fraudes), 19 (que trata de integridade das apostas) e 25 (que dispõe sobre os mecanismos de PLD).

Já o terceiro objetivo é proteger os apostadores contra práticas antiéticas ou destoantes da boa-fé. Ele pode ser inferido sobretudo dos arts. 16 e 17 (publicidade e propaganda), 28 (orientação e atendimento aos apostadores) e 29 (condutas vedadas na oferta de apostas).

O quarto objetivo é proteger os vulneráveis contra os transtornos de jogo patológico e o superendividamento. Entre outros, é possível apontar como evidência da adoção implícita desse objetivo o art. 8º, inciso III (jogo responsável), o art. 16, parágrafo único (desestímulo ao jogo e advertência sobre seus malefícios) e o art. 23, em seu §3º (dever de monitoramento da atividade do apostador para identificar danos potenciais associados ao jogo) e no §4º (limitação de tempo de uso da plataforma de apostas pelo usuário).

O quinto objetivo é propiciar a arrecadação de receitas, tanto para o Estado, quanto para alguns destinatários ou causas específicas. Ele pode ser inferido sobretudo a partir dos arts. 12 e 13 (contraprestação de outorga) e 51 (na parte em que altera o §1º-A do art. 30, da Lei nº 13.756, de 2018, que trata dos destinatários do produto da arrecadação da loteria de aposta de quota fixa).

Por fim, também é possível extrair da Lei nº 14.790, de 2023, um sexto objetivo: estimular a geração de emprego e renda e o desenvolvimento da economia nacional. Isso se pode retirar, por exemplo, do art. 7º, caput (exigência de que os operadores sejam constituídos sob as leis brasileiras e tenham sede de administração no País) e §1º, inciso IX (que trata da questionável exigência de sócio brasileiro detentor de ao menos 20% do capital social da pessoa jurídica).

Conclusão: a política regulatória e sua implementação

Diante do exposto, vê-se que, cotejando a Lei nº 14.790, de 2023, com a literatura e a experiência internacional, é possível extrair um conjunto de objetivos implícitos definidos pelo legislador. Esses objetivos, por certo, não podem ser negligenciados pelo Poder Executivo.

O que se espera, portanto, é que, no exercício de suas atribuições legais específicas relativas ao mercado de apostas, o Poder Executivo não apenas formalize sua política regulatória – erigida sobre esses objetivos e complementada com a declinação de um rol de princípios e diretrizes voltado para a sua consecução – como também se abstenha de praticar atos ou editar normas que conflitem ou possam comprometer sua efetividade.

Surge, então, uma nova pergunta: depois de formalizada, como essa política deve ser implementada? É sobre esse assunto que o quarto e último artigo dessa série tratará.

[1] OCDE. Recommendation of the Council on Regulatory Policy and Governance. Disponível em: https://web-archive.oecd.org/2012-12-05/86392-49990817.pdf. Acesso em: 1 fev. 2024.

[2] BRASIL. MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Secretaria de Acompanhamento Econômico. Plano Nacional de Política Regulatória. Brasília, DF, 2012, p. 10. Disponível em: https://www.gov.br/mdic/pt-br/acesso-a-informacao/reg/plano-nacional-de-politica-regulatoria/plano-nacional-de-politica-regulatoria_21122022.pdf. Acesso em: 1 fev. 2024.

[3] Idem, p. 11.

[4] Nesse ponto, a Lei nº 14.790, de 2023, adotou técnica diferente daquela que orientou o Projeto de Lei nº 442, de 1991, aprovado na Câmara dos Deputados em 2022 e ainda aguardando apreciação do Senado Federal. No art. 4º do citado PL, são declinadas nada menos do que sete finalidades e diretrizes que devem pautar a “intervenção do poder público na atividade econômica de jogos e apostas”.

Fonte: BNLData

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Regulação das apostas online no Brasil (parte 2): contribuições para a concepção de nosso sistema regulatório

Nesta semana, o Portal BNLData publica uma pequena série de artigos sobre o processo de construção da regulação das apostas online no Brasil, iniciado com a aprovação da Lei nº 14.790, de 30 de dezembro de 2023. No primeiro artigo, foram trazidas algumas reflexões sobre a ordenação e sequenciamento de esforços do poder público para dar o adequado início a esse processo.

A conclusão foi a de que o mercado brasileiro de apostas online efetivamente precisa, em primeiro lugar, conceber um sistema regulatório consistente e adequado, que reflita as respectivas especificidades. Neste segundo artigo, então, o que se pretende é apresentar o conceito de sistema regulatório, definir seus pilares e indicar quais devem ser os próximos passos a serem dados.

Os pilares de um sistema regulatório

Em apertada síntese, um sistema regulatório pode ser definido como o conjunto de diretrizes, regras, procedimentos, práticas e instituições que determinam a intervenção do Estado em determinado mercado ou atividade econômica. Da teoria da regulação, pode-se extrair a ideia de que um sistema regulatório está estruturado em cinco pilares.

O primeiro pilar é sua base constitucional ou legal – ou seja, o arcabouço primário que conforma a fonte jurígena do sistema regulatório, por meio da qual o Poder Legislativo define que mercado será regulado, quem será competente para fazê-lo e que diretrizes gerais deverão ser observadas.

O segundo pilar é a política regulatória, por meio da qual o Poder Executivo deixa claro quais serão os objetivos, gerais e específicos, a serem alcançados com a regulação que se busca implementar. Essa política será a bússola de todo o sistema regulatório, na medida em que ela delineia o que de fato o poder público deseja para o mercado de apostas. Ela é que será o ponto de ancoragem de todo o sistema e que, nessa medida, determinará sua forma e seu tempo de ação.

Por sua vez, o terceiro pilar é a estratégia regulatória. Por meio dela, o poder público estabelece os instrumentos, os recursos necessários e os prazos de implementação dos objetivos previamente estabelecidos na política regulatória. Ou seja, enquanto a política define o que deve ser buscado, a estratégia define a forma de execução ou cumprimento do que restou previamente definido. Para isso, há instrumentos conhecidos e já inclusive adotados em lei, como o plano estratégico, o plano de gestão anual e a agenda regulatória [1].

Já o quarto pilar é o dos processos e procedimentos regulatórios, que compreende as rotinas e instrumentos formais de produção e revisão de suas normas e demais atos administrativos (ex: autorizações para operar). Vale destacar que, no caso do mercado de apostas online, a construção de pilar não se limita aos termos da Lei nº 14.790, de 2023. Eles são apenas parte do pilar. É preciso, também, considerar os preceitos da Lei nº 13.874, de 2019 (a “Lei de Liberdade Econômica”), bem como incorporar outros instrumentos importantes para a regulação, como a Análise de Impacto Regulatório (AIR) e a Avaliação de Resultado Regulatório (ARR), é bom que se frise, não deve considerar.

Por fim, o quinto pilar diz respeito aos mecanismos de participação social, prestação de contas e transparência. Esses mecanismos conferem não apenas maior legitimidade e controle da dinâmica de funcionamento do sistema regulatório, como permitem uma maior troca de conhecimento entre regulado e regulador

A importância da permeabilidade do sistema regulatório

Esse quinto e último pilar é importante para a retroalimentação do sistema regulatório porque, como já exposto no primeiro artigo desta série, a primeira das falhas apontadas pela literatura especializada em regulação de jogos e apostas na implementação da regulação em países onde essa atividade passou a ser permitida é a falha de conhecimento. Como já se viu, essa falha ocorre quando o Estado não possui suficiente conhecimento sobre a dinâmica de funcionamento do mercado regulado, não sabe identificar os objetivos que precisa alcançar com a regulação deste ou daquele tema específico para que o mercado funcione bem ou melhor ou, ainda, não sabe identificar os meios e a forma de enfrentar determinado problema

Cabe aqui dizer que a regulação não é algo estanque, nem privativo do Estado. Ela deve ser vista como um processo em contínuo desenvolvimento. E, ao contrário do que se firmou no senso comum, nada impede que os próprios agentes do mercado participem desse processo – seja trazendo contribuições para o poder público, seja criando as chamadas normas de autoimposição, por meio do que se convencionou chamar de autorregulação [2].

Não é por acaso que diversas leis de agências reguladoras brasileiras estabelecem a necessidade de que as minutas e as propostas de alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços prestados sejam objeto de consulta pública, previamente à tomada de decisão pelo órgão. O que busca o legislador com isso é oportunizar a troca de conhecimento e o confronto de pontos de vista. Isso evita, por exemplo, que um regulador neófito – como será a Secretaria de Jogos e Apostas, do Ministério da Fazenda brasileiro – incorra em erros cometidos (e talvez já corrigidos) em outros países.

Ademais, a literatura especializada está repleta de casos bem-sucedidos de autorregulação – e mais até, de casos em que o Estado abre espaço formal para que certos temas sejam disciplinados, no todo ou em parte, pelos próprios agentes do mercado. Na indústria de jogos online, isso inclusive já é uma realidade: a autorregulação recebeu especial atenção do Parlamento Europeu, que consignou em resolução o relevante papel dos códigos de conduta e da cooperação [3]. Isso tem feito com que temas relevantes da indústria de jogos e apostas sejam objeto de discussão e produção de códigos de conduta, recomendações e outros documentos por parte de foros e instituições de autorregulação. Alguns exemplos são a European Gaming & Betting Association (EGBA) [4] e o Gaming Regulators European Forum (GREF) [5].

Sob essa ótica, então, a permeabilidade é um predicado importante de qualquer sistema regulatório, porque ela permite a troca de experiências e conhecimentos entre regulador e regulado. E essa interação contribui, de forma consistente, para mitigar a falha de conhecimento de que tanto se tem falado até aqui.

A construção do sistema regulatório brasileiro de apostas online

Entendido o que efetivamente conforma um sistema regulatório, quais os seus pilares e, ainda, qual é a importância de que esse sistema seja dotado de alguma permeabilidade, a questão que se põe em seguida é o que deve ser feito, na sequência, para sua concepção.

O primeiro passo – que na verdade corresponde ao primeiro pilar – já foi dado com a aprovação da Lei nº 14.790, de 2023. Por meio dessa lei foram apresentadas as diretrizes e regras do mercado de apostas online e definidas as condições de entrada, permanência e saída dos agentes operadores.

Sendo assim, o próximo passo é a concepção da política regulatória – a qual, como já explicado, servirá de bússola para o funcionamento do sistema. Mas isso já é assunto para o terceiro artigo dessa série.

***

[1] Tais figura estão previstas, por exemplo, nos arts. 17 a 21 da Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019, que dispõe sobre a gestão, a organização, o processo decisório e o controle social das agências reguladoras.

[2] A única diferença é que essas normas terão caráter convencional e, via de regra, não poderão afastar as normas fundamentais estabelecidas pelo Estado.

[3] UNIÃO EUROPEIA. Parlamento Europeu. Resolução do Parlamento Europeu, de 10 de setembro de 2013, sobre os jogos em linha no mercado interno. Bruxelas: Jornal Oficial da União Europeia, 9 mar. 2016, C 93/42. Disponível em: https://bit.ly/3rrcnf9 . Acesso em: 31 jan. 2024.

[4] A EGBA é uma associação que reúne os principais operadores de jogos e apostas estabelecidos, licenciados e regulados na União Europeia e Reino Unido. Seu objetivo central é a promoção sustentável do setor de jogos e apostas, em que consumidores possam usufruir de uma experiência de entretenimento seguro em ambiente de mercado competitivo e bem regulado. A EGBA tem trabalhado em 3 frentes de autorregulação: parâmetros de responsabilidade, com ênfase nas normas do Comitê Europeu de Normalização (CEN), propaganda responsável e proteção de dados.

[5] O GREF foi criado em 1989 como resultado de uma conferência entre as autoridades reguladoras de jogos e apostas da Dinamarca, França, Grã-Bretanha, Holanda, Portugal e Espanha. Ao longo de sua existência, o fórum tem sido palco de relevantes discussões, como prevenção à lavagem de dinheiro, operações de sites ilegais, proteção aos consumidores, distinções entre jogos e apostas, lisura nos meios de pagamento, jogo responsável.

Fonte: BNLData

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Regulação das apostas online no Brasil (parte 1): por onde começar?

A aprovação da Lei nº 14.790, de 30 de dezembro de 2023, foi um importante ponto de inflexão na história dos jogos e das apostas no Brasil. Embora não tenha sido a primeira norma legal a tratar do assunto – uma vez que a Lei nº 13.756, de 2018, já havia lançado as sementes dessa atividade econômica, ao enquadrar a aposta de quota fixa como modalidade lotérica –, foi a nova lei quem estabeleceu, pela primeira vez, diretrizes e regras para estruturação, organização, funcionamento, regulação e supervisão desse novo mercado em nosso país.

Engana-se, porém, quem acha que, desde então, o Brasil passou a ter um marco regulatório pronto e acabado para o setor. Basta uma leitura minimamente atenta da lei, e um breve conhecimento de teoria de regulação, para se chegar à conclusão de que a aprovação dessa lei é apenas o ponto de partida de um longo processo de construção da identidade, normatização e institucionalização desse setor no Brasil.

A questão é que as apostas de quota fixa são algo novo para o Estado brasileiro, no qual não temos suficiente experiência institucional e normativa. Mas, por onde começar? Como conduzir esse processo para que ele transcorra de forma adequada e consistente?

Para tentar ajudar a esclarecer esses pontos, publicarei, aqui no portal BNLData, uma pequena série de artigos sobre relevantes questões que precisam ser consideradas no processo de concepção e implementação da regulação das apostas esportivas no Brasil. Neste primeiro artigo, o objetivo é trazer algumas reflexões sobre a ordenação e sequenciamento de esforços do poder público para dar o correto início a esse processo.

Antes de executar é preciso planejar

O primeiro ponto que precisa ficar claro é: regular não é apenas produzir normas. Na verdade, a norma é apenas um dos instrumentos a serviço de uma causa muito maior: influenciar ou estabelecer o comportamento dos agentes de determinado mercado para que ele funcione de forma eficiente e segura de determinado mercado.

Antes de se produzir normas, é preciso saber onde, como e quando se quer chegar com a regulação. Parece algo básico, mas o erro mais comum – especialmente no mercado de jogos e apostas, mundo afora – é produzir atos jurídicos que não estão devidamente ancorados a objetivos de política pública que tenham sido prévia e claramente estudados e debatidos.

A experiência nos mostra que uma regulação açodada é usualmente inconsistente e leva à produção de normas sem sentido ou anacrônicas. Muitas vezes, gera ou aumenta distorções no funcionamento do mercado regulado, causando mais mal do que bem.

Trazendo esse aprendizado para nosso mercado de jogos e apostas, cabe dizer que, por mais compreensível que seja a expectativa dos agentes econômicos interessados em operar e a do próprio governo em iniciar a arrecadação dos valores que lhe serão devidos – a título de preço de outorga, taxa de fiscalização e tributos sobre a atividade –, uma boa regulação exige muito conhecimento ex ante do setor regulado e demanda uma cuidadosa seleção e aplicação de métodos e técnicas específicas.

Tentativas de abreviar essa trajetória – por exemplo, via replicação ou adaptação de modelos estrangeiros – devem ser evitadas a todo custo. Antony Cabot, renomado professor da Universidade de Nevada, Las Vegas, nos ensina que uma das ilusões mais comuns que orientam países no início da implementação da regulação de jogos e apostas é a de que reproduzir ou replicar modelos regulatórios adotados em outros países é uma boa opção [1]. Como cada país tem sua economia, sua cultura jurídica e até mesmo um tipo e um nível de interação de seus cidadãos com o jogo, o que funciona bem na regulação em Las Vegas, Macau ou Reino Unido pode não funcionar no Brasil.

Isso não significa, nem de longe, que a concepção e implementação da regulação das apostas online deve desconsiderar o que ocorre no mundo e criar algo totalmente novo. Pelo contrário: conhecer a experiência de outros países é essencial – tanto para que se possa saber o que funcionou e o que não funcionou, quanto para saber por que o resultado foi positivo ou negativo. Ocorre que esse benchmark é apenas o ponto de partida de um longo processo de construção da regulação.

A necessidade de métodos e técnicas adequados de regulação

A literatura especializada em regulação de jogos e apostas nos mostra que a implementação da regulação em países onde essa atividade passou a ser permitida costuma esbarrar, isolada ou cumulativamente, em quatro tipos de falhas.

A primeira delas é a falha de conhecimento. Ela ocorre quando o Estado não possui suficiente conhecimento sobre a dinâmica de funcionamento do mercado regulado, não sabe identificar os objetivos que precisa alcançar com a regulação deste ou daquele tema específico para que o mercado funcione bem ou melhor ou, ainda, não sabe identificar os meios e a forma de enfrentar determinado problema.

Já a segunda é a falha de instrumento, que ocorre quando a lei ou a regulamentação adotada pelo órgão regulador ou supervisor são inapropriados ou ineficazes para resolver determinado problema. Nesse caso, o que costuma ocorrer é que, além de não resolver o problema, o ato do poder público acaba levando ao seu agravamento – ou, ainda, à criação de outro problema, de igual ou maior intensidade.

Por sua vez, a terceira falha é a de implementação. Aqui, embora o Estado conheça o problema e aplique as ferramentas que, em tese, seriam adequadas, o resultado desejado simplesmente não é alcançado. Isso pode ocorrer não apenas por erros em detalhes da implementação – como prazos inadequados e uso de sistemas que, pelo seu dimensionamento, se revelam insuficientes para dar conta de determinada demanda –, como também porque o mercado acaba reagindo de forma diferente daquela originalmente imaginada pelo Estado.

Por fim, a quarta falha é a de motivação. Ela ocorre quando o Estado deixa de atuar ou tem sua ação enviesada por elementos externos à regulação, como a captura política ou econômica.

Em regulação, não há gênios; há, isto sim, técnica e método. Se bem dominados e manejados, a técnica e o método criam as condições para que o objetivo maior da regulação – a saber, o bom ou melhor funcionamento de determinado mercado – seja efetivamente cumprido. Mas, quando ignorados ou preteridos, o resultado é, via de regra, negativo ou até desastroso.

Conclusão: a necessidade de prévia construção de um sistema regulatório

A partir de tudo o que foi exposto, é possível afirmar, sem qualquer dúvida, que, antes de iniciar seu processo de regulação de apostas online – por meio de edição pura e simples de normas complementares às diretrizes gerais estabelecidas na Lei nº 14.790, de 2023 –, o Poder Executivo precisa definir o que, como e quando será buscado com essa regulação. Se assim não for, são grandes as chances de que nosso processo incorra em uma ou mais falhas de regulação apontadas na literatura especializada.

Em termos mais técnicos, pode-se afirmar que o que o mercado brasileiro de apostas online efetivamente precisa, em primeiro lugar, é conceber um sistema regulatório consistente e adequado, que reflita nossas especificidades. De acordo com a teoria da regulação, trata-se do conjunto de diretrizes, regras, procedimentos, práticas e instituições que conformam a intervenção do Estado em determinado mercado ou atividade econômica. Esse é que deve ser, de fato, o ponto de partida para a regulação do apostas online.

A questão é saber como esse sistema deve ser estruturado. Mas isso é assunto para o próximo artigo dessa série.

***

[1] CABOT, Anthony; PINDEL, Ngai; WALL, Brian (Org.). Regulating Land-Based Casinos: polices, procedures and economics. Las Vegas: UNLV Gaming Press, 2018.

Fonte: BNLData